O PÃO BÁSICO
Agora que entendemos um pouco sobre a fermentação natural e como fazer o nosso próprio levain, vamos finalmente ao que interessa. Mas se você chegou aqui à procura de uma rápida “receita de bolo”, chegou no lugar errado. Vamos seguir na mesma pegada do artigo sobre o levain, procurando entender os porquês de cada detalhe.
Naturalmente, a fórmula do meu pão básico foi baseada em várias outras, experimentando ajustes até conseguir um resultado que me agradasse. São ajustes constantes, devido à alterações climáticas ao longo do ano, adaptação aos horários disponíveis e sobretudo a irregularidade das farinhas. Uma mesma farinha integral, por exemplo, chega a ter diferenças de qualidade de um pacote para outro. Aqui entra o grande barato da coisa que é o feeling do padeiro. Sua observação é fundamental no controle deste processo.
PERCENTUAL DO PADEIRO
ingrediente | % | peso |
---|---|---|
farinha | 100% | 1000g |
água | 60% | 600g |
sal | 2% | 20g |
fermento biológico fresco | 3% | 30g |
Antes, é preciso entender porque trabalhamos com percentuais e não com números absolutos (daí as “fórmulas” ao invés de “receitas”). A tabela acima, simplifica esse entendimento: os ingredientes são sempre relativos à quantidade de farinha da massa, que representa 100%. Desta maneira, uma “receita” é facilmente redimensionada, bastando manter coerência com as porcentagens. Note também que a métrica é toda em gramas, pois uma xícara de água não tem o mesmo peso de uma xícara de sal ou de farinha, e por aí vai. Em pães de forma com fermento industrializado, esta precisão não faz tanta diferença. Em pães artesanais, fermentados naturalmente e finalizados sem formas, através de um processo todo à mão, saber lidar com as fórmulas é determinante no resultado.
Percebemos então a necessidade de uma boa balança, de preferência digital. Ingredientes de baixa porcentagem como especiarias, temperos secos, sal (que controla o ritmo da fermentação), tem impacto sensível de poucas gramas. Aqui vale investir em uma balança de precisão daquelas pequenas, com casas decimais. São itens baratos de se adquirir.
No entanto, este percentual do padeiro é um pouco mais complicado quando incluímos o levain na brincadeira. Em nosso “pão básico”, gosto de manter sua inoculação baixa, similar à manutenção da cultura, girando em torno de 12-15% de farinha pré-fermentada. Note que estes 12-15% não representam o peso total do levain, que ainda leva água. O termo “farinha pré-fermentada” evita confusões com diferentes hidratações da cultura.
Portanto, é relativo usar o peso total do levain: 100g de levain de alta hidratação é diferente de um levain mais seco, cada um tem uma quantidade diferente de água e farinha, esta sim deve ser adotada como referencial de inoculação. O mesmo vale para calcular a hidratação final da massa, devemos considerar o quanto de água tem no levain. Conforme vemos, com mais componentes influenciando nos totais finais, os cálculos ficam mais complexos. O exercício prático é a melhor maneira de se acostumar com essa matemática e montar suas próprias fórmulas. Vamos então ao nosso pão básico e, literalmente, parar com essa dor de cabeça e botar a mão na massa!
"RECEITA" (FÓRMULA) • PÃO DE FERMENTAÇÃO NATURAL
No processo a seguir, consideramos farinha branca nacional (conhecida pela nomenclatura “tipo especial”), que geralmente tem uma taxa baixa e indesejável de apenas 10% de proteína. A integral costuma ter pelo menos 11% e deverá ser peneirada. Os 5% de centeio são por questão de sabor (além de darem um pequeno “empurrão” enzimático). Centeio é pobre em glúten, portanto evite aumentá-lo no caso deste pão. Sendo assim, a hidratação do nosso pão básico está calculada em 70%, um bom ponto de partida para um aprendiz começar a manusear este tipo de massa. Lembre-se que a hidratação é relativa: a absorção de água pode mudar sensivelmente conforme o tipo de farinha que você adquirir. Escolha bem e conheça a sua farinha! Ademais, deixe para aumentar a hidratação aos poucos, conforme se sentir confortável com as massas mais úmidas. Via de regra, quanto mais água na massa, maiores as chances de grandes alvéolos no miolo (por isso as esburacadas ciabattas costumam passar dos 80% de hidratação). Claro que outros fatores, como o retardamento e o manuseio leve da massa irão influenciar nas bolhas que se formarão em seu interior. Eu, particularmente, não gosto de miolos com buracos grandes e almejo uma alveolação menor e mais distribuída ou uniforme.
10:00 PREPARO DO LEVAIN
ingrediente | % | peso |
---|---|---|
água | 60% | 59g |
farinha integral | 100% | 98g |
cultura (stiff starter) | 50% | 49g |
Assumindo que você tenha em mãos uma cultura madura (alimentada no dia anterior afim de atingir seu pico na manhã seguinte) e de baixa hidratação (menos que 80% de água), vamos preparar o levain do pão. Lembre-se também de ter separado um excedente para a continuidade do seu fermento natural.
Separe 49g da cultura em um recipiente, dilua em 59g de água (esfregando bem com uma colher) e misture 98g de farinha integral até incorporar tudo como uma massa. Reserve por 6 horas a 26-28°C, o suficiente para atingir seu auge (repare que o grau de inoculação é alto). Se houver uma temperatura mais fria, este tempo poderá se estender um pouco. Sua observação é chave!
levain antes e depois (o talho em cruz é apenas para mostrar melhor a mudança)
14:40 AUTÓLISE
RESUMO | ||
---|---|---|
total de farinha | 100% | 990g |
hidratação final | 70% | 693g |
farinha pré-fermentada | 13% | 129g |
COMPOSIÇÃO DA MASSA | ||
---|---|---|
levain | 24% | 206g |
água | 71% | 615g |
farinha branca | 80% | 689g |
farinha integral | 15% | 129g |
farinha de centeio | 5% | 43g |
sal | 2,1% | 17,8g |
ADJUNTOS OPCIONAIS | ||
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cebola desidratada | 2,5% | 25g |
alecrim fresco | 1% | 10g |
azeitonas pretas | 15% | 148g |
soaker multigrãos | 8% | 79g |
Na fórmula acima, utilize a tabela central para medir os ingredientes. Aqui temos 1,7kg de massa, o que produz 2 belos pães. Os totais absolutos estão na esquerda, considerando ali a distribuição de água e farinha no levain que possui 60% de hidratação. Os adjuntos da direita, por ora, podem ser ignorados (consulte o apêndice ao final).
Iniciaremos com o que chamamos de “autólise”. Não vou entrar muito nos detalhes científicos mas, a grosso modo, esta é uma técnica descoberta pelo professor francês Raymond Calvel ainda nos anos 70, que estudou benefícios ao misturar a farinha com a água e deixá-la descansando, antes de proceder com a sova e incorporação de outros ingredientes. Neste período, sem qualquer intervenção, começa o desenvolvimento do ponto da massa, graças à água necessária para ligar as proteínas formadoras de glúten, além de iniciar a atividade enzimática nativa na farinha: amilase, convertendo açúcares; e protease, quebrando as proteínas promovendo extensibilidade (capacidade da massa se prolongar), balanceando então a elasticidade (capacidade de retrair) afim de permitir uma massa mais expansível. Em termos de trabalho braçal, a autólise é uma mão na roda, afinal quando você for sovar, a massa já teve um início de formação, se tornando mais fácil de manipular. Acho que já temos motivos suficientes para gostar dessa tal de autólise…
Em uma bacia ou bowl, misture toda a água e farinha com as mãos. Nada de sal neste momento, não queremos sua interferência pois ele atua justamente contra a extensibilidade, fortalecendo a massa estreitando as cadeias de proteínas. Uma espátula de plástico te ajuda a incorporar: vou girando o bowl com uma mão limpa e misturando com a outra, como se fosse uma batedeira manual. Não se preocupe com qualquer tentativa de sovar, apenas hidrate toda a farinha e deixe-a descansar por 1 hora. Cubra ou coloque dentro de um forno com luz acesa se estiver em um dia frio, lembrando que a temperatura desejada da massa é de 26-28°C.
iniciando a mistura e checando a autólise 1 hora depois
Nota para quem usar uma batedeira planetária: a alta hidratação desses pães pode dificultar o trabalho de uma batedeira para dar o ponto na massa na etapa a seguir. Neste caso, você pode reservar um percentual (5%) da água, para dar o ponto com mais facilidade e depois incorporar a água restante, uma técnica chamada de bassinage.
15:40 MISTURA E SOVA
Neste momento, seu levain deverá estar bem “inflado” e com aquele cheiro peculiar de fermento, um frescor levemente ácido e frutado. Use uma colher para colocar, em pequenos nacos, a quantidade certa na massa. Repare como o levain ficou aerado, um sinal de sua desejada atividade. Assim como na manutenção diária da sua cultura, você quer inocular na massa do pão um levain maduro, bem populado. Adicione o sal após e misture tudo, pinçando com as mãos até obter uma massa que mais parecerá com uma meleca horrível, te deixando dúvidas se aquilo realmente vai virar um lindo pão. Por fim, transfira para uma mesa de trabalho, onde acontecerá a sova. Sovar massas grudentas como essa é uma tarefa impossível de se fazer com a técnica tradicional de “amassar” com a palma das mãos. A técnica do “slap & fold”, ou método Bertinet, ou sova francesa, ou seja lá como se chama isso, é a solução aqui e melhor descrita visualmente no vídeo ao lado. Requer um pouco de prática, mas uma vez aprendida, se torna um exercício pra lá de divertido. A dica é usar a ponta dos dedos, um toque leve das mãos e absolutamente nunca enfarinhar a mesa. Grudar a massa na mesa é necessário aqui, para que você exercite sua elasticidade, batendo e envelopando, como se tentasse incorporar ar na massa. A cada virada, pegue a massa de lado, assim ela vai girando e sendo trabalhada por inteiro. Use uma espátula para limpar a mesa e suas mãos de vez em quando e repare que quanto mais a massa se desenvolve, menos ela grudará e sua superfície vai ficando lisa e homogênea. Este processo leva de 5 a 10 minutos, dependendo da prática. Desejamos uma massa com média formação de glúten, com um pouco de resistência a rasgar se você esticar um pedaço com as 2 mãos. Transfira então a massa para um bowl onde ocorrerá a fermentação primária. Não se preocupe com o ponto agora, que continuará a se desenvolver durante as dobras a seguir. Por fim, se tiver uma batedeira planetária, utilize a 2ª velocidade para dar este ponto, geralmente em torno de 5 minutos.
16:00 DOBRAS / FERMENTAÇÃO PRIMÁRIA
As dobras são uma técnica maravilhosa que desenvolve a massa quase que passivamente, apenas com esforços pontuais entre intervalos bem espaçados. Consiste em esticar e dobrar a massa como um envelope, em seus 2 eixos, um processo que muitos fazem dentro do próprio bowl (evitando o trabalho de transferir a massa para a mesa). O vídeo demonstra melhor, repare que o objetivo aqui é esticar e “amarrar” firmemente a massa, que durante o descanso vai se fortalecendo. Repita as dobras entre 30 a 60 minutos, de 2 a 4 vezes, variando conforme o progresso da massa. Você deverá sentir diferença a cada dobra, a massa vai resistindo mais e parecendo mais forte. Se ela aparentar querer rasgar, deixe ela relaxar e dobre novamente dali um bom tempo. Além disso, a temperatura vai sendo redistribuída. Ou seja, as dobras são uma ótima idéia! Em dias frios, eu costumo manter o bowl dentro de um forno com a luz acesa durante os intervalos, para manter a temperatura desejada da massa (26-28°C). Durante este processo acontece algo muito importante que é a fermentação primária, produzindo sabor, gaseificando (crescendo), enfim, transformando aos poucos a massa. Esta fase pode levar desde 2 horas (dependendo de fatores como a temperatura da massa, porcentagem de inoculação e estado do seu levain), até 4 horas ou mais (pode-se retardar até o dia seguinte se colocarmos a massa na geladeira). Desejamos proceder ao boleamento quando a massa apresentar sinais de atividade (como a presença de bolhas), que no tato deverá sentir uma certa maleabilidade diferente da rigidez compacta do início. Se passarmos do ponto e deixar a massa crescer muito, nos aproximamos de uma indesejável degradação de glúten e um ciclo fermentativo que avançou demais, podendo faltar ao final, além de uma acidificação maior, nem sempre desejada. Se nos adiantarmos e procedermos com o boleamento, abreviando a fermentação primária, perde-se bastante com um pão sub-fermentado. Visualmente, atente para um crescimento em torno de 30-50% no volume da massa. Mais uma vez, sua observação é que vai determinar quando seguir adiante. Deixe a sua massa se desenvolver!
18:40 PORCIONAR / PRÉ BOLEAMENTO
descanso após porcionar e pré-boleamento
Transferimos a massa para a mesa de trabalho levemente enfarinhada. Excessos neste sentido irão alterar a fórmula da massa, além de provocar defeitos no boleamento (estrutura interior do pão). A espátula é sua melhor amiga para lidar com massas grudentas. Corte a massa em 2 pedaços iguais ou pese em uma balança conforme preferir. Faça uma bola com cada pedaço, novamente a espátula (e uma mão leve) ajuda muito a não grudar. Arraste a massa girando-a na mesa, visando formar tensão embaixo dela. Esta etapa facilitará o boleamento final daqui 20-30 minutos.
19:00 BOLEAMENTO / DESCANSO FINAL
Para cada massa pré-boleada, fazemos o formato final. Existem várias técnicas de boleamento e a melhor instrução são os diversos vídeos disponíveis na internet. Fiz um ao lado com uma técnica bem simples para iniciantes (procure começar com hidratações não muito altas). Mas não deixe de pesquisar outros métodos para fazer “batards” (torpedos) ou “boules” (bolas). Lembre-se que o objetivo é “lacrar” a massa com um selamento firme e uma forte tensão em sua superfície para que o formato se sustente por si próprio. Como o pão irá assar sem forma, um boleamento mal feito impacta diretamente na capacidade do pão se erguer durante a cocção. Atente também ao baixar ou desgaseificar a massa: alguns preferem lidar com mãos bem leves, preservando a estrutura que se formou na massa até então. Outros pressionam levemente antes de bolear, para dar uma chance da massa continuar crescendo. Pense na rede de glúten como um monte de balões elásticos que vão inflando até um limite. São decisões que dependem do estágio fermentativo da massa e sua força desenvolvida até o momento, ou seja, novamente o “feeling do padeiro” entra em jogo. Por fim, passe o topo da massa boleada em uma mistura de farinha de trigo e farinha de arroz (50% cada), isso evitará que ela grude nas cestinhas de descanso final. Essas “cestinhas” são chamadas de “bannetons” e, na ausência delas (são caras e importadas), use a sua imaginação: uma pequena bacia pode acomodar um boule, assim como uma forma de pão pullman pode guardar seu batard. Forre o recipiente com um pano limpo (linho) e coloque a massa dentro, com o selamento para cima. No topo, costumo colocar o farelo de trigo que extraio ao peneirar minha farinha integral. Não só dá valor nutricional, mas também mais sabor na base do pão e insulação térmica durante a cocção. Neste momento, a massa pode ir direto para a geladeira para um descanso final em torno de 5°C, por 12 a 16 horas. Lembre-se que na fermentação natural, a pressa é realmente inimiga da perfeição. O longo processo te recompensará com um sabor sem comparação com pães convencionais mais rápidos. Em dias mais frios, pode-se realizar uma etapa adicional que é um descanso pós boleamento, a temperatura ambiente (“bench rest”). Já cheguei a descansar a massa boleada por até 1h30m antes de retardá-la na geladeira. Tudo depende, novamente, do estado da sua massa, fique de olho nela e dê a ela o tempo que ela precisa.
9:00 ASSAR (manhã seguinte)
Os pães irão assar direto da geladeira* ao forno. Para que se forme a carecterística casca desses pães, a massa precisa de um ambiente com vapor d´água. Acontece que, durante a cocção, a umidade provida pelo vapor ajuda a gelatinizar açúcares na superfície do pão, promovendo cor e brilho na casca (e um sabor caramelizado, delicioso). Sem o vapor, a superfície do pão ressaca rapidamente e nada disso ocorreria, produzindo um pão pálido, sem mencionar que manter a umidade nos minutos iniciais é fundamental para permitir que a massa se expanda. Fornos profissionais de padarias conseguem injetar vapor. Como ficam nós padeiros caseiros? São vários os métodos de se vaporizar um forno doméstico, não vou entrar em cada um deles (basta pesquisar no google se tiver curiosidade), mas sim apontar meu jeito predileto que são as panelas de ferro ou “dutch ovens”. Assar pão dentro de panela pode soar estranho de início, mas é perfeito: a panela fechada é suficiente para segurar a própria umidade da massa e criar um micro-ambiente vaporizado. Você pode ainda borrifar água antes de tampar o pão dentro (desde que a panela tenha sido pré-aquecida). A panela grossa ainda tem a vantagem de uniformizar a temperatura em torno da massa. Na ausência da panela, vale novamente a imaginação: já usei uma pedra de pizza com um vaso de barro invertido de tampa (fiz até um pegador em cima), funciona perfeitamente, além de ser bem mais barato. Pré-aqueça o forno com a panela (cubra a alça com papel alumínio, se for de madeira), 1 hora antes. Quanto mais quente, melhor: o crescimento final (chamado de oven spring) acontece assim que a massa entra no forno e é essencial na conclusão do processo, sendo a temperatura acima de 250°C ideal para que esta expansão final aconteça. Novamente, são muitos fatores desde o início que influenciarão se o seu pão irá crescer agora: qualidade da farinha, saúde do levain, fermentação primária, ponto da massa, boleamento firme, descanso final apropriado, corte bem feito, vaporização, temperatura do forno. Neste universo complexo está o grande fascínio dos pães de fermentação natural.
*Você pode optar por assar no mesmo dia, sem o uso do retardamento. Neste caso, a massa boleada deverá crescer nos cestos por 2 horas ou mais, dependendo da temperatura ambiente. Neste método mais direto, recomenda-se aumentar a inoculação de levain para acelerar o processo que já é longo. O sabor tende a ser menos complexo, não necessariamente pior. Uma curiosidade são aquelas bolhas na casca (efeito “pururuca”), elas só acontecem se houver o retardamento. Vale ressaltar que o corte é mais difícil de ser feito em uma massa não fria, menos rígida. Em contrapartida, é mais fácil monitorar o descanso final da massa sob temperatura ambiente. Em padarias, o retardamento a frio pode se tornar um problema logístico se pensarmos em grandes quantidades. Para nós, caseiros, qualquer cantinho na geladeira resolve! Mas no fim, tudo depende apenas de sua preferência pessoal.
Prepare uma pá (como essas de pizza) para receber a massa. Qualquer pedaço fino de madeira ou até um papelão serve. Espalhe um pouco de fubá em cima para ajudar na hora de deslizar a massa pra dentro da panela. Para os boules, eu uso as próprias mãos para colocar dentro da panela, com muito cuidado para não se queimar nem danificar a massa com o toque. Retire as cestinhas da geladeira e vire elas sobre a pá, deixando o selamento para baixo. É hora de realizar o corte, que é uma arte à parte. Cortar sutilmente a superfície auxilia na expansão e influencia diretamente no formato final. No caso dos batards ou torpedos, o corte mais fácil a se fazer é único e longitudinal, paralelo a seu eixo. Para que o corte se abra formando uma pestana, recomenda-se posicionar a lâmina bem inclinada, algo em torno de 30 graus. O corte não precisa ser profundo, 1/2 centímetro já basta para a mágica acontecer (se todos os outros detalhes do processo correram bem).
Muitos utilizam uma lâmina curva para obter essa angulação. Pode-se fazer uma caseira, eu encaixo uma gilete em um hashi (aquele palitinho japonês). Há quem use a gilete diretamente na mão, outros usam até uma faca bem afiada e muitos compram essas ferramentas prontas (e caras) em lojas especializadas. E no caso do boule, o corte pode ser perpendicular para produzir desenhos variados. Um bom treino é desenhar os cortes no papel. Uma boa inspiração é o Instagram, lá você encontrará pães com os cortes mais lindos por aí afora.
Assim que cortar, você está correndo contra o relógio. Deslize o pão para dentro da panela, tampe (borrife água se quiser) e mande pro forno imediatamente. O período de vaporização (com a tampa colocada) é suficiente em 20 minutos. Após este tempo, você deverá retirar a tampa para dar uma chance do pão dourar e finalizar, geralmente neste instante final reduzimos a temperatura para 220 graus durante mais 20 minutos, dependendo do peso da massa. Não tenha medo de deixar o pão amarronzar bem. Diferente dos pães comuns, o pain au levain só tem a ganhar com uma casca bem caramelizada, escura.
20 minutos logo após destampar (vaporização) / pão assado após 45 minutos
Por fim, deixe esfriar em uma grade antes de comer. Este pão tem uma durabilidade (shelf life) maior que pães comuns, podendo ser consumido em 1 semana. Recomenda-se embrulhar em sacos de papel ou um pano. Fechar em plásticos bem vedados irá promover umidade, perdendo a casca rapidamente e acelerando o surgimento de mofos. Conforme for ficando velho e seco, pode ser transformado em torradas, ou até batido no liquidificador para uma preciosa farinha de rosca. Também suporta bem o congelamento, bem embalado em alumínio e filme plástico, sendo descongelado aberto a temperatura ambiente e depois reaquecido por 10 minutos para ganhar de volta sua casca crocante.
Tão importante quanto o prazer de comer, é o hábito de avaliar o resultado. Não deixe de analisar todo o trabalho realizado e anotar possíveis alterações, aprendizados e dúvidas a serem exploradas na próxima vez. O pão teve o crescimento desejado? Os cortes abriram bem? Como está a casca, brilhante, opaca? Assou mais em baixo? Devo subir a grade do forno? E o miolo, bem alveolado, leve ou compacto? Sabor muito ácido? São diversas perguntas a se fazer para que você construa um conhecimento empírico a cada experiência, ajustando pequenos detalhes para conseguir o pão do seu jeitinho, do seu gosto. E o mais importante: não desanimar se algo der errado! Pratique, repita, faça de novo. Siga uma mesma fórmula, mudando uma variável de cada vez. Não altere tudo afim de tentar resolver um problema, senão ficará difícil isolar uma causa raiz. Boas fornadas a todos!!
APÊNDICES
O que seriam os “adjuntos opcionais” na fórmula do pão básico, que não foram mencionados até agora?
Temperos como cebola desidratada, alecrim, azeitonas pretas, grãos, etc., podem dar outra personalidade ao pão. São adicionados sempre nos estágios finais da sova, pois dar ponto na massa com outras “coisinhas” dentro será mais trabalhoso. Costumo colocar a massa já com médio glúten num bowl e vou envelopando os ingredientes aos poucos, depois retorno à mesa e finalizo. Tenha cuidado com o impacto do que for adicionar: grãos, por exemplo, absorvem muita água, alterando a hidratação do seu pão. Por isso fazemos um “soaker”, que nada mais é que uma mistura em quantidades iguais de água e grãos, algumas horas antes de fazer a massa. As porcentagens variam: alecrim, por sua vez, é muito potente e não deverá passar de 1%. Por fim, há quem use 0,5% de malte diastático em pó (difícil de encontrar no país), rico em enzimas, contribuindo para a coloração dourada da casca. Pode ser produzido com malte de trigo (encontrado em lojas de insumos cervejeiros) triturado num moedor de café.
Meu conselho é: antes de começar a inventar adjuntos para o seu pão, domine o sabor dele com apenas água, farinha e sal. É fácil mascarar um pão com azeitonas graúdas deliciosas ou nozes caras, enquanto é muito mais difícil conquistar satisfação somente no “pão básico”. Revelamos o talento de um pizzaiolo pedindo uma simples marguerita. Afinal, qualquer pizza fica gostosa se botarmos cogumelos regados a azeite de trufas brancas, queijo francês e etc.!
Temperatura desejada (°C): 26 * 4 = 104
Subtrai-se a soma dos 4 fatores abaixo:
Temperatura ambiente: 21
Temperatura da farinha: 18
Temperatura do levain: 20
Temperatura de fricção**: 4
Temperatura da água: 104 – 63 = 41°C
TEMPERATURA DA ÁGUA
No método descrito aqui, assim como em quaisquer fórmulas que você pesquisar, um “ingrediente” imprescindível deve ser respeitado, afinal já vimos bastante o quanto ele influencia no comportamento da coisa: a temperatura da massa. A maneira mais fácil de controlar isto é através da água. A temperatura ambiente e a consequente temperatura da farinha, são fatores mais incontroláveis, a não ser que sua cozinha tenha um aquecedor ou ar-condicionado, ou você tenha um pacto com São Pedro. Mas o quanto devemos aquecer a água? Utilize a equação do exemplo ao lado.
(esta conta não te garante 100% de precisão no acerto mas ajuda a chegar perto do desejado. Com um pouco de prática você lembrará dos números e ajustará “de cabeça” a sua água nos dias mais frios)
**quantos graus a massa esquenta durante um processo mecânico de mistura/sova (utilizando batedeira ou masseira)
SOURDOUGH.XLS
Alguns já devem ter pensado: com tanta matemática, não seria legal fazer uma planilha pra calcular as fórmulas dos pães? Sim, seria bacana e aqui está ela! Clique aqui para baixar.
Nesta planilha, preenchemos somente os campos em amarelo para dimensionar as fornadas, hidratação e etc., incluindo a preparação do levain e até um cálculo de temperatura da água. “Roubei” ela do site thefreshloaf.com e adaptei para mim. Fique à vontade para alterá-la conforme sua necessidade e só se aventure a mexer se souber um mínimo de Excel, pois eu não dou suporte nestes softwares…
BIBLIOGRAFIA
Fontes acadêmicas
(Kline e Sugihara foram os descobridores do Lactobacillus sanfranciscensis)
Applied and Environmental Microbiology – Kline & Sugihara
Applied and Environmental Microbiology – Gänzle & Ehmann
Livros
(indico o melhor de todos em minha opinião)
Bread: A Baker’s Book of Techniques and Recipes – J. Hamelman
Redes sociais
(excelente fonte de discussões técnicas)
thefreshloaf.com: Lactic Acid Fermentation – Debra Wink
thefreshloaf.com: Pineapple juice solution part 1 – Debra Wink
thefreshloaf.com: Pineapple juice solution part 2 – Debra Wink
The technique of autolysis – Piergiorgio Giorilli
APIECE Instagram – Ian Lowe