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SOBRE O AUTOR

     Primeiramente, ressalto que esta série de postagens não substitui um curso presencial de panificação. No entanto, gosto de buscar e disseminar conhecimento, e desejo dar oportunidade àqueles que não podem pagar milhares de reais (eu faço parte dessa turma) em cursos especializados ou mesmo aos padeiros caseiros (também me incluo aqui), que nunca farão um estágio numa padaria profissional. O pão de fermentação natural é um símbolo ancestral de um alimento presente em toda a história da humanidade, uma cultura que merece ser preservada e repassada adiante.

     Parece exagero mas, minha vida mudou depois que decidi produzir todos os pães que consumo, isso foi em 2010 quando abandonei 15 anos de carreira profissional bem sucedida para ir morar no pé de uma montanha. No caminhão de mudança não entrou meu currículo nem meu holerith, mas sim um monte de pacotes não materiais, entre eles a vontade de “fazer” mais e “comprar” menos, algo difícil numa era onde exatamente o contrário é a tendência – consumismo inconsciente e falta de tempo – uma filosofia que renderia muito mais que o foco disso aqui. A fato é que, surpreendentemente, esta experiência foi mais transformadora no aspecto gastronômico. Sim, os motivos supracitados me iniciaram no assunto. Porém, se hoje me perguntarem por que eu faço pão, eu responderia: “simplesmente porque é bão dimais da conta!!!

     E antes de qualquer aparência prepotente, declaro desde já que não tenho a menor vocação para escrever artigos técnicos neste sentido, sou um mero amador. Se chegou aqui atrás de estudos aprofundados, esqueça o besteirol abaixo e procure por outras fontes, embora eu alerte que, no nível mais científico, este é um tema de muitas ambiguidades, paradigmas antigos, empirismo, poucas pesquisas acadêmicas, enfim, não é sempre que uma meleca de farinha de trigo vai parar debaixo de um microscópio. Mas de fato, existem padeiros profissionais realmente conhecedores do assunto: em todas os ofícios da vida temos grandes referências, não deixe de ter as suas na panificação também. Mas reconheço também que é raro um conteúdo online assim, em português, gratuito, cuidadosamente elaborado. Minha única intenção aqui é nortear conterrâneos e iniciantes no mundo da fermentação natural, com esclarecimentos que vão um pouco além da “receita de bolo” que vemos em muitos livros superficiais, sem complicar muito ou distanciar do objetivo principal que é fazer e comer um bom pão.

UM POUCO DE CIÊNCIA

     Vale a pena entender um pouco o que é esse tal de “fermento”. Uma bactéria? Não. Seria um “bichinho” mágico e invisível que faz crescer uma massa, produz álcool na cerveja, faz uma boa cachaça ou o combustível do seu carro?

Saccharomyces cerevisiae (Fermento Biológico Seco / INDUSTRIAL)     Na biologia, os fermentos ou leveduras pertencem ao grupo dos fungos. O mais conhecido deles tem o nome esquisito de Saccharomyces cerevisiae, tão famoso que foi “domesticado” para fins comerciais e hoje é vendido na forma de tabletes frescos ou em pó (seco), é o tal do fermento biológico de mercado, um “bichinho” super faminto que faz seu pão crescer rapidinho. Mas este não é o único fermento que existe. Na fermentação natural, uma série de outros “irmãos” estão em jogo, Candida milleri é um deles. Mas esqueça todos esses nomes complicados. Apenas lembre: as leveduras são responsáveis pelo crescimento da massa. Como se consegue isso? Entra em cena outra turma, as enzimas presentes no grão do trigo. Uma muito importante se chama “amilase”, pois é ela quem transforma o amido da farinha em açúcares simples. É como uma fábrica de comida para as leveduras metabolizarem, se multiplicando, produzindo álcool e o gás carbônico que faz a sua massa “crescer” (graças ao glúten que nela se forma, prendendo esses gases e expandindo em volume).

     Agora você pode fazer esta ótima pergunta: se o fermento faz crescer a massa, então de onde vem o incrível sabor do pão de fermentação natural? Entra em cena o fascinante mundo dos lactobacilos! Esses sim pertencem ao gênero das bactérias e consomem um outro tipo de açúcar proveniente da farinha – maltose – o que não é metabolizado pela maioria das leveduras que, por sua vez, se beneficiam de açúcares gerados pelos lactobacilos. Podemos chamar isto de uma convivência harmoniosa (simbiótica) entre os lactobacilos e leveduras no levain.

Fermento NATURAL    Basicamente, são 2 grupos de lactobacilos que podem atuar no levain. Temos os homofermentativos, que, pelo seu próprio nome – homo – possuem somente um produto de sua fermentação: ácido lático. Já os heterofermentativos geram mais produtos além do ácido lático, como álcool, gás carbônico e por fim o ácido acético (responsável pelo famoso “azedinho” no sabor). Cada grupo prospera mais ou menos na cultura sob determinadas condições. A grosso modo, a acidez produzida pelos lactobacilos reduz a sua própria atividade, que desacelera sob um PH muito baixo, diferente das leveduras, que são mais tolerantes. Mas não vamos complicar ainda mais. Vou parar por aqui pois acho que já deu pra perceber que esse segundo grupo (heterofermentativo) é mais interessante na sua contribuição para o pão. Aqui citamos o tal do Lactobacillus sanfranciscensis, descoberto lá na Califórnia, deixando os pães de São Francisco pra lá de famosos. Trata-se de uma bactéria heterofermentativa que surge no levain após algumas semanas de cultivo diário (sem submetê-lo à refrigeração) e fornece um sabor maravilhoso ao pão.

     Vale observar que, ao contrário do que se mistifica por aí afora, essas bactérias não são exclusivas de um lugar ou região, assim como uma idade longa do levain nada representa de especial. Mas e aquele levain de “20 anos” criado por padeiros ancestrais na antológica padaria “X”? Verás que não passa de uma aura infundada. O lugar e condições influenciam sim, não por uma (inexistente) exclusividade geográfica, mas sim por aspectos que vão desde as diferentes farinhas locais, porcentagens e tempos de alimentação, temperatura, hidratação, até mesmo a cozinha sendo usada. Enfim, são infindáveis fatores que justificam dizer que se você pegar um levain em um lugar distante e tentar cultivá-lo do mesmo jeito em sua casa, renovando-o diariamente, dificilmente produzirá o mesmo pão de sua origem, a não ser que se reproduza todo o cenário rigidamente. Gosto da frase que diz “estamos todos fazendo o mesmo pão” (no sentido deste quase-milagre da simples mistura de farinha, água e sal, aliado à cuidadosas técnicas), assim como cada fornada traz um pão diferente, nunca igual. Isso vale para qualquer padeiro, amador ou profissional, aqui ou do outro lado do mundo.