TERRA DO NUNCA: senta que lá vem textão, desses que não cabe em timeline…
Quando um projeto deixa de ser guerra, para se tornar igreja…
No calor do fim de outubro, 2020, uma motivação sob circunstâncias inéditas me fez acordar cedo para ir sozinho à Pedra do Cruzeiro em Gonçalves, e me enfiar debaixo de um negativo. A paralisação inicial da pandemia nos fez perder a temporada daquele ano. Como escalar tarde da noite não é uma opção por ali e a crise de abstinência da escalada era forte, adotei a alvorada, uma opção de horário incomum na modalidade bouldering. Naquela manhã nasceu a concentrada linha Tratado de Paz, um trocadilho com o subsetor Vietnã, o “retiro espiritual” que o local oferece e o desejo de nunca mais haverem conflitos injustificáveis de acesso por ali. Um projeto que foi preparado 7 anos atrás, mas permaneceu congelado pelas restrições impostas no setor. Através de um novo caminho absolutamente inofensivo, estes antigos projetos voltaram à tona e presentearam o fatídico presente com um passatempo rico, completamente isolado do caos mundo afora.
Tratado de Paz – mal sabia a enrascada que eu iria me meter minutos depois – Outubro de 2020
No êxtase da cadena, me dirigi poucos metros ao lado para testar minha visão envelhecida, neste que era considerado um projeto futurista. Agora no “clube dos 40”, essa classificação não fazia mais sentido para mim. Sugerir que linhas estão além do nosso tempo é disfarçar uma derrota não mais adiável na minha idade. E assim sendo, naquele dia, nasceu também um novo processo: com o vigor de “tiozão parado no tempo®” (piada interna) e um knee-pad em meu repertório, elucidei o improvável “sitdown start” do boulder Capitão Gancho.
Devido ao calor e chuva, a minha “chavinha” virou para a limpeza e preparação de novos blocos, como costumo fazer no off-season. Uma fórmula que vem rendendo boas novidades, há muitos anos. Somente fui retomar a briga com o Capitão Gancho em Abril com uma sutil queda nas temperaturas, possibilitando um retorno às sessions no fim de tarde. Devido às agarras finais do boulder tomarem sol, meu ritual começava de forma tardia. Ao chegar lá, passei a bloquear o sol nas agarras com uma camiseta estendida por um “stick”. E ia aquecer escalando nas redondezas. Às 17h30, reaquecia no projeto e iniciava o espanco até 19h20. Por 11 vezes isso aconteceu nos 2 meses seguintes. Como em todo processo, veio a tentação pela desistência, aquela frustração que todos enfrentam após várias sessions. As emoções se alternavam bastante. Precisei de 2 sessions só para repetir o stand-start, um V9 que limpei numa tarde e resolvi na primeira session, em 2015. Ou seja, me senti um velho inclinado à aposentadoria, por “desencadenar” algo já realizado antes. Depois disso, foram mais 3 sessions para conseguir, pela primeira vez, sair debaixo e chegar até o stand. Essas 3 sessions me encheram de mau humor, pois ficar caindo no 3o. movimento não me cansava fisicamente e me fazia ir embora puto da vida, sob a sensação de que, se assim continuasse, logo eu iria perder força pelo baixo volume realizado. Quando finalmente passei, foi uma primeira vitória marcada de emoção. Se comparado a outras épocas, percebia em mim reações mais emotivas, provavelmente marcadas pela pandemia. Eu sou mais um que não escapou dessa tristeza toda. Aos poucos, fui entendendo a necessidade de refinar essa camada emocional, filtrando impurezas e executando cada tentativa dentro do que mais gosto de praticar, que é o zen, colocando energia vital em cada movimento, nem mais, nem menos.
Stand-start – quando eu era “jovem” e forte – Junho de 2015
Da 5a. até a 11a. session, realizava 4 tentativas espaçadas por descansos de 10, 15 e 20 minutos, respectivamente. Foi a calibragem que ajustei para conseguir chegar no crux do stand-start, em 90% das vezes. Cada pega debaixo era épico como deve ser, em linhas grandiosas assim. Incrível notar como assimilei bem os moves inferiores, que tanto me derrubaram nas sessions anteriores. Não atribuo isso à ganho de força física, mas apenas a uma melhor técnica e acúmulo de memória muscular, além de melhoria das condições conforme o outono avançava. Progresso e revés se mesclavam conforme as sessions aumentavam. No início, há um entalamento instável de joelho para ganhar uma mão direita inexistente. As falhas neste movimento me renderam uma impeditiva epicondilite lateral, para completar a medial que eu já vinha administrando. Na sequência, temos um movimento que testa bem a saúde do seu manguito rotador esquerdo, ao ganhar a incrível invertida do boulder, chegando nela por baixo, vindo de uma blocada. Confesso que isso me deixou contente (pelas incontáveis fisioterapias de ombro que faço) pois não tive problemas lesivos ali, apesar do alto volume de passagens pelo lance. Por falar em movimentos, este boulder tem um recorde de burocracia em uma só agarra. Se ajeitar na invertida me custa em média 25 segundos sem sair dela. São diversos ajustes de mão e pé até você estar pronto para fazer o Capitão Gancho. Esta agarra é única, a ponto de influenciar o nome do boulder (o “gancho”), dentro da temática do vizinho “Piratas do Cruzeiro”.
Se tem uma entre pouquíssimas coisas boas nas mídias sociais, admito que é a leitura de relatos sobre esses processos por detrás de escaladas no limite pessoal. Ficou mais acessível descobrir histórias de alta dificuldade, que custaram várias dezenas de sessions. Eu nunca cheguei a tanto. Alguns de meus processos passados ultrapassaram sim, a marca de 10 sessions, porém sempre diluídos entre outras distrações ou espaçados por 2 temporadas. Esse foco para se “internar” é um ponto fraco meu: por desenvolver novas linhas na maior parte do tempo, tenho sempre boas tentações de curto prazo para me render. Desta vez, inspirado em tantos relatos, aliado ao fato de que já havia dedicado mais de 1 década em um ritmo sempre “comendo pelas beiradas”, resolvi adotar um comprometimento diferente, como se não houvesse o amanhã. E ver até onde, em termos de dificuldade, vai o meu potencial dentro desta desgastante experiência que passa dos 2 dígitos de investidas. Conforme justifiquei, voltar mais forte depois para superar um projeto, deixou de ser opção para mim. Cada ano me sinto mais fraco e frágil, fisicamente. Mas sabemos bem que o principal “músculo” da escalada é composto por uma massa cinzenta…
a penitência era engolir o choro
Eis que na 12a. session acontece uma reviravolta. Em plena véspera de inverno, resolvi ir no setor novamente pela manhã. Quem já malhou projeto no Cruzeiro sabe bem que as condições por lá são complicadas. O gnaisse local enseba fácil e as temperaturas são um pouco mais elevadas. Durante o mês de Maio, repleto de chuvas e picos de calor incomuns, cheguei até a recorrer ao famigerado ventilador portátil. Por fim, na manhã do dia 19 de Junho estava eu lá novamente, para dar os meus 4 pegas. Até então, meu highpoint era ter dominado o primeiro batente do Capitão Gancho e cair a poucos centímetros da próxima agarra, de onde fazemos o penúltimo movimento da porra linha toda. Havia feito isso de forma consistente (3 de 4 vezes) na session anterior. Dominar minha respiração (frequência cardíaca) foi o último detalhe para esta progressão. Em casa, eu fazia campus board após pular corda até o coração sair pela boca. Só faltava eu parar de fumar e beber! Voltando: durante o meu tradicional aquecimento, onde refaço trechos do boulder para estimular a memória muscular, tive uma epifania. Resolvi experimentar 2 pés diferentes no trecho final e senti considerável melhora. É comum restringir nossa visão quando fechamos um planejamento de execução, visto que todos os movimentos já foram isolados e bem ensaiados. Por isso, sempre forço uma abertura mental para esmiuçar micro-betas, mesmo que improváveis ou nos “46 do segundo tempo”. Afinal, até o Nalle deu uma guinada essencial em seu V17, após alterar sua sequência construída durante anos.
Sincronicidade – um exemplo de betas alterados na última hora – fotos by Leandro ‘Pardal’
Enfim, um resumo descritivo da linha. A primeira seção se destaca por um lance esticado para um flanco sem agarras evidentes. Resolvi isto com o uso de knee-pad, importante mencionar. Talvez seja possível não utilizar este acessório, principalmente se o escalador tiver ampla envergadura. Aí começa a engrossar: temos uma típica blocada usando calcanhar, para chegar na invertida e fazer a tal burocracia supracitada, que vai queimando sua embreagem até se endireitar para o Capitão Gancho. Este, por sua vez, consiste em um deadpoint para um batente fora de esquadro, com pés ruins. Exige precisão e pliometria para dominar corretamente a agarra, além de força de contato e isometria para fazer um deadhang sem suporte algum da mão que está na invertida, agora na altura da coxa. Não há como se lançar no próximo movimento, pois se trata de uma cruzada para uma agarrinha ruim. Depois há um último deadpoint, para um friso mordido, com alto potencial de queda dramática a poucos instantes do fim da brincadeira toda. E é claro que eu caí por ali na primeira tentativa deste tão esperado dia, dando uma primeira bica na pesada porteira. Descansei 10 e dei o sonhado pega final. O famoso “flow”, a tal zona da cadena, onde não sentimos nada e sequer lembramos direito o que aconteceu. Uma “dimensão” que só acessamos no limite. Ao ver o vídeo depois, confirmo a impressão que tive de um tiro certeiro, incrivelmente sem o menor erro.
A sensação momentos após um evento desses, não tem preço. Tem que aproveitar porque são poucas vezes na vida. Não gritei, não vibrei de alegria. Confesso que apenas chorei. Desci logo para abraçar a Yuri e chorar mais um pouco. Dedico a ela, minha parceira de vida, esta importante história que há muitos anos eu não vivia assim, com tanta profundidade. Tornar o sofrimento do impossível em algo palatável e finalmente alcançável, é uma das motivações que compartilho com outros escaladores. Alguns gostam de valorizar a glória, o sentimento de realização, o mérito. Estes valores, acompanhados por adulações virtuais e um deslumbre demasiado, são uma armadilha que sempre procurei me esquivar. Aqui eu revelo uma ironia do destino – um deletar acidental – que quase me fez perder o registro “uncut” (filmagem da ascensão). Por pouco, eu não teria sequer a “prova do crime”, forçando ainda mais o meu desapego pós-cadena. Me restou apenas um “crop” quadrado de baixa resolução! Após 2 porres comemorativos, este boulder já é uma página virada. Sua preciosidade está na experiência vivida. A contribuição deixada ainda me motiva, porém não tanto como antigamente (quando eu era mais ingênuo em relação à insustentabilidade dos acessos em setores privados). Hoje, prefiro deixar mais um exemplo de atitude – à prova dos tempos – do que entregar à comunidade um pedaço de pedra que não me pertence. A propósito, este projeto tinha a sugestão do nome “Barba Negra”. Batizei de “Terra do Nunca”, a ilha fictícia do Peter Pan & Capitão Gancho, com bons paralelos neste caso: gosto quando dizem que crianças não são pequenos adultos, mas adultos são crianças grandes. Assim é a “nerverland”, um lugar que cheguei tarde, mas dizem que lá ninguém envelhece. E no sentido literal, o nome faz jus às terras do setor Cruzeiro. Jamais esquecerei a humilhante expulsão de 2015, quando um dos proprietários me “intimou” a comparecer no setor, acompanhado pela Polícia Militar.
Primeira ascensão – a ponta de um iceberg – Junho de 2021
No total, foram 12 idas espalhadas por aproximadamente 50 dias. Poderia ter sido mais rápido? Com os betas finais, maior assiduidade e sem aquecimento global, provavelmente daria para ter resolvido tudo isso em 10 dias. Mas as coisas nunca são perfeitas como queremos e aqui reside o grande barato da vida. Sempre aprender, aceitando suas linhas tortas. Só consegui ir lá no máximo 2 vezes por semana, em parte por conta da pandemia (evitei quase todos os finais de semana, afim de minimizar aglomerações e deixar o setor para a turminha que não pode ir durante semana) e também por uma estratégia diferente de outras temporadas, quando me dedicava 100% à rocha. Este ano, estou realizando treinos compensatórios. De qualquer forma, esses números andam cada vez mais enjoativos no esporte, de tanto que movem mídias e o hype em geral. Filtram notícias que vem quase sempre acompanhadas pelo tempo da realização, um grau necessariamente alto e a idade do protagonista. Acaba por ofuscar toda uma história imensurável por essas estatísticas. Histórias que podem inspirar mais que esses recordes à la Guinness Book.. É um assunto chato que tenho opinião formada, mas não vale estender agora.
No entanto, reconheço a importância de sugerir uma gradução, principalmente se tratando de uma escalada rara na região, com tal qualidade e dificuldade. Graduar é um ofício chato pra caramba. Vamos lá: conforme percebe-se acima, a vivência na abertura de linhas é justificadamente mais trabalhosa que nas repetições. É preciso subtrair todo esse lastro e projetar uma combinação de betas já conhecidos e possíveis outros, diferentes biotipos e pontos fortes, boas condições climáticas, entre outros fatores ideais. Compara-se com linhas similares no mesmo setor ou o mais próximo possível, levando em consideração condições pessoais que vivi nessas referências. Estava eu mais forte? Qual a influência das minhas atuais lesões nos meus 2 cotovelos? A peculiar invertida acabou por me trazer uma comparação mais distante, lá em Ubatuba com o clássico Jericó*, que tive a sorte de mandar em apenas uma session, em 2014. Mas não se iluda: é um boulder bem mais curto e sem firulas, de rápido entendimento. Por conta da introdução e finalização bem mais complexas, somadas ao fator adicional de força-resistência (inexistente no Jericó), é inegável que o Terra do Nunca seje mais duro. Conclusão inconclusiva: resta saber quantos graus acima. Reitero que graduação é mais um papo reto, chato e extenso, que vou deixar para um artigo distinto. Este aqui é sobre escalada em sua essência. Encontre a sua!
*atualização: o plano era tentar mais um projeto e também a linha mais dura do setor, Casa da Onça (esta ficou no “quase” em 2015, logo antes da interdição do subsetor). Seriam bons parâmetros pois situam-se no mínimo em V12. Por motivos de lesão grave na coluna, esta análise ficou impedida. Me resta então a comparação com o Jericó: boulder historicamente aberto pelo Linha como V11. Um pé-chave se quebrou e o Cesinha refez o “FA”, subindo para V12. Pelo que pesquisei, quase todas as repetições desde então confirmaram este grau (exceto Daniel Woods). Seguindo esta lógica, fica a proposta de V13 para o Terra do Nunca. Certamente não mais que isso, possivelmente menos.
*nota de 2022: em fevereiro, Felipe Ho e Rodrigo Cesar repetiram a linha, a princípio sugerindo V12 (⭐⭐⭐⭐⭐). Consequentemente, já sabem qual a minha opinião sobre o grau do Jericó. 😁 Muito interessante observar que há tantas outras linhas duras e magníficas na região, com poucas ou nenhuma repetição. Basta cotar um incerto V13 que a atração é infalível (há exemplos disso em Iperó). O que podemos refletir sobre este fenômeno?
21 de Junho de 2021