SOBRE BOULDERS E PLAQUINHAS
Desde a chegada da pandemia em 2020, as poucas opções me levaram de volta à Pedra do Cruzeiro em Gonçalves, local que eu não frequentava há 6 anos, exceto esporádicas visitas aos proprietários para agradecer e saber se tudo estava bem. Para a minha surpresa, o setor estava com outra cara: todo o bananal foi removido, os blocos inferiores ficaram expostos com um visual frontal incrível da serra, deixando um velho subsetor com ares de “novo”. A parte mais alta na floresta também sofreu transformações, com marcas de um grave incêndio não acidental, além dos boulders em si, vários deles retomados pela natureza. Andar sem rumo por um labirinto de pedras, varando um mato com mais espinho do que folhas, é higiene mental para mim. Me vem à tona o quão vivo e impermanente são esses ambientes. Como resistem e se transformam ao longo dos anos. Árvores centenárias. Algumas delas tombadas pelo caminho, repletas de cogumelos. Cactus gigantescos. Vestígios de carvão formados pelo incêndio. Brotos nascendo por todos os cantos. Vegetações renovadas a cada estação. Trilhas que se fecham em poucos meses. Marcas de animais em troncos, pegadas na terra escura. Um exército incontável de saúvas, aquelas que cheiram a capim limão, marchando em absolutamente todas as noites. Tucanos cruzando o céu. Dezenas de quatis em travessia pelas copas. Colméias agitadas. Me inveja a irracionalidade incorruptível da fauna local, vivendo em sintonia com as evoluções naturais e fortalecendo este cenário resiliente. Me envergonha a fragilidade de tanta riqueza, quando é submetida às intervenções humanas. Como meros visitantes, fica a questão no ar. Qual o nosso direito de se impor, “empossando” trechos de pedra como se fossem nossos, em um reino que não nos pertence? Observo linhas antigas completamente “verdes”, sem vestígios nossos. Seria o bouldering por ali um raríssimo exemplo contra as tendências atuais? Estranhamente contente, abri o primeiro da temporada passada: Impacto Zero. Uma utopia ilusória, mas naquele microcosmo sobrevivente, se trata de uma realidade.
Estas são lembranças cafonas e difíceis de convencer com palavras. A experiência solitária nas montanhas é um precioso caminho de educação pessoal. Somos justificadamente associados a gerenciamento autônomo de risco, consciência ambiental, superação constante e, neste contexto, navegação por ambientes inóspitos (sem “plaquinhas”). Não à toa, grandes indivíduos surgem desta atividade. Mas não vamos esquecer que nessa brincadeira houveram inúmeros episódios onde consequências impactantes foram pontos de grande debate. Muitas práticas passadas são consideradas hoje absurdas. Sim, faz sentido levantar mudanças frente à popularização e profissionalização do esporte, sobretudo na sustentabilidade da sua faceta outdoor. No que diz respeito à acessibilidade em esportes de aventura, é uma questão delicada que vai muito além desses poucos parágrafos.
Por eu lidar com bouldering, uma modalidade logisticamente simples e acessível aos inexperientes, posso dizer que tenho algum entendimento sobre onde devemos investir em melhor sinalização para escaladores. Precisamos colocar “placas” dentro de ginásios, bem longe das sagradas pedras. Seja para elucidar o recém chegado que vai perdido pro mato em busca do seu primeiro boulder, ou pro moleque forte que puxa barra com o mindinho, louco pra postar uma cadena “hype” nas redes sociais. Ambos os casos só têm a ganhar com alguma mentoria de respeito e ética, valores que deveriam ser catequizados bem antes de uma decisão irreversível como a das plaquinhas. Se isto se tornar um comodismo bem-vindo, não vai demorar muito para os visitantes exigirem o mesmo em boulders, afinal a confusão em determinados setores pode ser até maior que uma falésia saturada de vias. Veja um exemplo de 2 blocos com alta densidade de linhas:
Mas e a proteção ao direito autoral? Há 19 anos atrás, já usavam a tecnologia para responder isso: o site bleau.info (hoje com mais de 30 mil linhas documentadas) é um caso de sucesso.
Mas não tem sinal de celular no pico. Existem inúmeras formas de baixar conteúdos para leitura offline. Planejamento antes de ir e capacidade de visualização são requisitos fundamentais, a falta disto compromete sua segurança e não é responsabilidade do conquistador minimizar (muito menos estimular) o despreparo alheio. Não sabe identificar linhas, vá com alguém mais experiente. Não espere por plaquinhas, o resultado pode ser catastrófico quando você visitar locais sem esse amparo demasiado.
Sobre o exemplo de Fontainebleau, berço histórico da modalidade: as sinalizações pintadas por lá, nada tem a ver com identificação titular de boulders. É uma tradição muito antiga que se deve ao conceito de “circuitos”, originalmente visando o treinamento para alpinistas, fora de temporada. Consiste de pequenas setas e números coloridos por dificuldade, uma forma de orientação que remete aos anos 40-90 (período este sem internet de alta velocidade, muito menos 4G, diga-se de passagem). Hoje, esses circuitos estão cada vez mais em desuso: gerações atuais preferem a busca individual de boulders, sendo raro algum escalador viajar para lá tendo um “circuito” como objetivo. Ainda assim, marcações novas são proibidas e esta questão é controlada por uma organização voluntária (COSIROC). Não é de surpreender que este tema por lá não seje à prova de polêmicas entre partidos contra ou a favor, marcações clandestinas, outras sendo apagadas propositalmente. Introduzir uma “novidade” dessas nos dias atuais é introduzir também mais conflitos e quem paga o preço são as pedras, sem falar da segregação da comunidade.
Enfim, será que iremos nos arrepender de chumbar nomes na rocha em pleno 2021? Seria esta mais uma prática invasiva a ser condenada no futuro? Vamos passivamente pagar para ver, ou nos manifestar democraticamente em busca de alternativas?
31 de Maio de 2021