Pular para o conteúdo

PRIMAVERA DE 2023 EM FONTAINEBLEAU

     Em 13 anos após meu “êxodo urbano”, as viagens de férias se contam em uma mão. Isso se deve a uma equação dos seguintes fatores, por ordem de peso: vontade de viajar inversamente proporcional à paz de espírito (a necessidade de sair de casa diminuiu drasticamente); redução de impacto com adoção de um novo estilo de vida; recursos financeiros limitados (na vida eu vejo 2 buscas – dinheiro ou vida – eu escolhi a segunda :-). Com tal esporadicidade, soa ilógico investir, nesta última viagem, em um roteiro “deja vu”: 30 dias em Fontainebleau, seguido da querida Bélgica. Quase um repeteco de 2007. Desta vez, ainda tivemos a oportunidade de conhecer a teicultura na Europa. Dos tais 3 fatores, a “necessidade” ultrapassou os limites, após uma exaustiva resiliência de trabalhos desde o início da pandemia.

Foto: Yuri Hayashi
Chivers: um oitavo não polido, pouco repetido, o único que dei 2 sessions. Foto: Yuri Hayashi

     Sobre escalada. Afinal, 90% da viagem se resumiu em acordar, tomar um café da manhã sempre acompanhado de um bom queijo branco, preparar um lanche e me dirigir pra floresta, retornando à noite para cozinhar a janta. Monotonia pra uma vida inteira. A sensação é de sorte, camuflando um enorme esforço pessoal após a aposentadoria me testar cruelmente nos últimos anos. “Sorte” por ainda poder desfrutar, com relativa saúde, de um dos melhores lugares para a prática do bouldering no mundo. Meu presunçoso objetivo, de tentar os oitavos, foi cumprido com uma entrega sincera. Apanhei de muitos deles, absorvi bastante referência, me surpreendi – positivamente e também negativamente – com a qualidade das linhas. Reforcei a satisfação em ter clássicos “world-class” aqui no quintal de minha casa. Reforcei o velho conceito da surra também acontecer nos graus inferiores, que por vezes são superiores em qualidade e não faltam em boas lições. Minha admiração pelos bleausards só aumentou ao procurar conhecer os personagens por detrás das linhas intrigantes à minha frente. Muitos deles continuam arrebentando até hoje, com mais de 50 anos na carcaça. Fontainebleau continua sendo para mim a melhor escola de movimentação em rocha que existe, uma demagogia justificada pelo “titiu” aqui que já conheceu outras mecas mundo afora. Tem algo especial lá…

     Conforme dito, tratei o ego no chinelo e, diferente da última vez (quando o foco foi “volume de cadenas” ou “zona de conforto”), filmei muito pouco visto que, na maior parte do tempo, não valia montar a câmera para filmar sessions que sequer evoluíam para tentativas integrais de um boulder. Alguns eu fiquei há 1 movimento disto, mas é ilusório quando se trata de uma linha com crux acentuado. Enfim, compilei um punhado de poucos registros pra não passar em branco:

     E pra não deixar isto com cara de “meu querido diário inútil”, anotei algumas recomendações para você que está indo a Fontainebleau pela primeira vez. Mas que fique claro: tem brasileiros com muito mais experiência por lá do que eu. Faça sua própria pesquisa e não se limite às minhas dicas.

1) Quando ir: obviamente primavera ou outono. Vivenciei ambos. Uma coisa legal do primeiro é ter os dias bem mais longos, embora seje pouco necessário escalar até a noite devido às boas condições ao longo do dia. Já no outuno, talvez, as paisagens encantem mais. Em Março temos uma floresta ainda reiniciando seu ciclo de vida pós inverno. A propósito, já estive em Fevereiro também, quando o frio pode ser proibitivo para nós, brasileiros.

2) Onde ficar: a brasileirada é assídua no Gîte Arbonne e Bloasis, se não quiser perder tempo pesquisando, esses não tem erro. Como eu fiquei um período grande, optei desta vez pelo airbnb. Encontrei uma pechincha de ótima qualidade em Nemours, o que me estimulou a conhecer as áreas mais ao sul, onde não havia ido tanto antes. Por falar em estadia mais longa: dispor de uma máquina de lavar roupa em casa, fez enorme diferença.

3) Guias: aqui só me resta propagar o sistema que sou suspeito para falar, o bleau.info! Sua combinação com o livro 7+8, me fez encontrar os boulders mais escondidos de forma independente. Generalizando um pouco, qualquer linha com mais de 4 estrelas (e muitos votos) no site, será “satisfação garantida”. Muitas delas tem vídeos caso goste de já ter uns betas. E conforme sabemos, leve a sua sapata da humildade: escolha projetos a cerca de 2 graus abaixo do seu limite usual. Na verdade, patinar nos graus mais baixos lá é uma realidade pra escalador de qualquer nível.

4) Mais de 250 setores: minha recomendação é pessoal, pois não gosto de “crowd”. Então acabo evitando os grandes setores, onde literalmente centenas de pessoas transitam em um dia. Se você gosta ou precisa se enturmar, arrumar parceiro, não quer se perder procurando boulder, estes são alguns dos grandes: Cuvier, Isatis, Cul de Chien, Éléphant. Dependendo do dia, terá dificuldade em encontrar vaga para estacionar. Caminhar pelo setor vai te lembrar véspera de Natal no shopping Aricanduva, só que com chances de pisar em papel higiênico usado ou bosta de bebê. Aliás, são muitos os setores “family friendly”. É comum hoje ver casais de escaladores com filhos pequenos, sendo acolhidos pela acessibilidade ridícula de alguns setores por lá. Por fim, insisto em se dar pelo menos uma chance de sentir a “paz da floresta”, considerando os setores menores. Alguns desses vão oferecer apenas uma ou duas opções de qualidade. Mas que geralmente surpreendem. Além de aumentar as chances de você sentir aquele mágico arenito na sua pele, ao invés de um implastro de magnésio ou aqueles pés pretejados por borracha (aqui vale um lembrete: escovar tudo, limpar a areia da sapata, minimizar tick marks, são excelentes práticas).

5) Crashpads: como viajar em classe econômica com 2 bagagens inclusas virou coisa do passado, alugar crash se tornou uma ótima opção. Afinal, mala extra chega a custar 50 euros por trecho, podendo totalizar até 200 ida e volta (sem contar o risco de pagar um excedente por volume de bagagem especial). De quebra, te poupa o transtorno de carregar um colchão durante o resto da viagem, caso você pretenda destinos além do climb, como eu fiz. A opção mais barata foi o Padadise, com retirada e devolução bem práticas e o equipamento estava em bom estado. Planeje bem esta parte pois interfere diretamente no seu proveito nos boulders, já que muitos clássicos não são exatamente lowballs.

6) Dia de descanso: provavelmente as inevitáveis chuvas irão ditar quando se tira um dia de descanso em Fontainebleau. Uma dica é que todo primeiro domingo do mês existe um incentivo cultural no país onde diversos museus, castelos etc., ficam gratuitos. Se estiver de carro (extremamente recomendado), divirta-se, vou poupar as delongas pois em turismo convencional até o ChatGPT poderá te ajudar. Um destaque nos meus passeios foi uma visita em Chablis, famosa região produtora de vinho branco. Curtir um Petit Chablis (o mais barato deles – La Chablisienne é uma cooperativa com ótimo custo-benefício), comendo queijo rochefort e um bom pão com nozes, é daquelas experiências que te garantem alguns palavrões espontâneos de prazer.

7) Quanto tempo de viagem: no mínimo 2 semanas. Não acho que vale a pena picar o nosso desvalorizado R$ indo pra Europa e ficar só uns 10 dias em Fontainebleau. Se a meteorologia atrapalhar seus planos, correrá o risco de ter escolhas limitadas aos setores mais abertos (nos belos bosques há blocos que precisam de vários dias até secar) e sairá de lá com uma impressão aquém da oportunidade que teve. Sem contar o período de adaptação: leva alguns dias até começar a entender que a escalada por lá não se resume a força física…

Yuri @ Errance (Petit Bois) - Font 2022