Pular para o conteúdo

BOTEQUIM CARIOCA

      Após deixar o Rio de Janeiro, devo aqui umas anotações sobre algo que muito me transformou nessa babilônia. Achei melhor escrever logo antes que minha falha memória deixe algumas importantes emoções para trás…

     Me mudei ao RJ por volta de 2004. Nestes 6 anos, o meu amor pelo Rio foi altamente influenciado, sobretudo, por uma atividade que pode soar marginal para muitos, mas foi essencial para minha evolução como gente: frequentar botequins.

botequim carioca é um símbolo de resistência, de amor às raízes

     “Boteco” pode lembrar pé-sujo, um cantinho nojento, onde velhos largados passam as noites bebendo. Por algum motivo (que me sugere a época de faculdade de comunicação e artes), desde os meus primeiros dias no Rio eu comecei a me interessar por esses estabelecimentos. Morava ao lado de shopping center mas preferia andar bem mais, tarde da noite, pra ir jantar no botequim depois do treino. Em alguns meses eu fui percebendo que os verdadeiros botequins não são simples comércios – bares, mercearias, cafés, etc. – algo muito além se respira nestes locais. Um sentimento de arqueólogo urbano foi nascendo em mim, fascinado com tesouros em plena vida no meio do caos da cidade grande, emanando de dentro de refúgios jurássicos. Hoje, em um mundo que sofre ataques fulminantes do capitalismo, o autêntico botequim é um sobrevivente heróico cujo lucro mal lhe importa. Tradições gastronômicas são cultivadas com eterna fidelidade às origens de variadas etnias, onde comer e beber é uma experiência muito além das sensações gustativas, é algo como um happy-hour de gerações, um lugar onde vc, seu pai e seu avô se sentiriam em casa, celebrando em um ambiente à prova dos tempos. É somar muitas décadas de ocasiões vividas em um pequeno espaço físico, porém imensurável e histórico patrimônio cultural!

     Aí tu olhas em volta e vê o dono do buteco ainda ali, 7 dias por semana, sem delegar a gerentes, sem se render às filiais, te cumprimentando como se fosse da família e te servindo sua cachaça predileta sem precisar pedir. Pra se ter uma idéia, no Adega da Velha eu cheguei até a ganhar presente de casamento do Sr. Mesquita, quem me preparou centenas de minhas refeições ao longo dos anos. Como eu morava em um conjugado, não preciso justificar mais para declarar que o botequim sempre foi minha primeira casa, e não segunda. E mesmo depois de casado e com apê novo, não deixei de bater ponto principalmente no Real Chopp, dos donos Ermírio e Afonso, portugas que me viram de olhos marejados ao me despedir.

     Pra quem é paulista como eu, logo adorei que botequim carioca não precisa se fantasiar, é anti-passarela, vc vai como se estivesse dando um pulo no quintal de casa, de chinelo e bermuda sem se preocupar. Seu balcão é um zoológico, seja pelas iguarias expostas ou pelos mais variados fregueses que fazem sua horinha por ali. Já topei até com ex-fuzileiro de guerra alemão, sujeito sem as 2 pernas e movido à uísque. No geral é gente da vizinhança, com décadas de assiduidade. Gente da 3a. idade, algo que aprendi a não me constranger. Foram tantas as histórias que ouvi como se fossem de pai para filho! Pensando nisso, é triste notar esta falta de renovação na freguesia dos botequins tradicionais. A maioria das minhas companias de boteco tinham idade para ser meu pai. Teria eu nascido na época errada? É lamentável constatar que as gerações mais jovens andam lotando as franchisings do estilo “pé-limpo” (importado de SP), consumindo cegamente. Por isso eu recomendo à vc, que acaba de completar 18 anos: frequente um boteco de verdade, faça um investimento na sua alma. Mas enxergue através das aparências, duvide das sofisticações, suas despesas etílicas merecem um destino bem escolhido. E não estou fazendo apologia ao alcoolismo! Também não sou contra novidades, mas o Rio de Janeiro me ensinou na prática que quanto mais preto-e-branco, melhor.

     O tradicional botequim carioca é um símbolo de resistência, de amor às raízes. Infelizmente não vemos mais os mesmos poetas de outrora enchendo a cara nos botecos. É preciso manter vivo a mesa de bar como palco de discursos sinceramente embriagados, cheios de acaloradas promessas de revolução. É nos botequins onde eu ainda vejo esperança em um mundo cujo convívio social vem migrando para dentro do congelador digital. Vamos pro bar, que lá nós organizamos o mundo…

     Vida longa aos verdadeiros botequins cariocas!

 

São Bento do Sapucaí, 19 de novembro de 2010